A ÉTICA CRISTÃ E O IDEAL CAVALEIRESCO
A formação do ideal cavaleiresco esteve intimamente ligada à ética cristã. Em seu Livro da Ordem de Cavalaria, Raimundo Lúlio, autor catalão doséculo XIII, busca adentrar ainda mais esta ética na concepção medieval decavalaria. Procura, através da inserção de ideais cristãos, ordená-la, guiá-la e, num certo sentido, recuperá-la, para que encontre e justifique o seu lugar na sociedade. Desta forma, Lúlio tenta aderir à cavalaria laica o conceito de ordem, termo pertencente ao vocabulário religioso. As considerações feitas pelo autor deste verdadeiro manual de comportamento do cavaleiro estão intrinsecamente ligadas ao ideal cristão. Seja no momento da sagração do cavaleiro, seja num momento onde é analisada a simbologia das armas cavaleirescas ou, ainda, na constante comparação do ofício do cavaleiro na luta contra o infiel, ao do clérigo que, em sua luta espiritual, assume o papel deum miles christi.
Enfim, Raimundo Lúlio acredita que a ordem dos bellatores e a dos oratores são as mais próximas em suas finalidades: a proteção e a salvação, seja terrena ou espiritual, do povo cristão. A formação do ideal cavaleiresco esteve intimamente ligada à ética cristã. Ao longo dos séculos, a Igreja tentou, por meio dos mais diversos procedimentos, regularizar, regulamentar e controlar o meio guerreiro. Sabendo que durante a idade Média o corpo de guerreiros, ou bellatores, constituía-sebasicamente pelo corpo de cavaleiros, pouco a pouco a Santa Sé tentou inserir no âmago da formação da ideologia cavaleiresca, uma dose da ética cristã. O presente trabalho pretende mostrar um dos meios utilizados pelos religiosos para imiscuir esta ética na mentalidade dos cavaleiros, a saber, o Livro da Ordem de Cavalaria, de Raimundo Lúlio, um verdadeiro tratado sobrea ética cavaleiresca. Entendemos a obra de Raimundo Lúlio como integrante de um contexto textual mais abrangente, o de tratados desenvolvidos por clérigos e não-clérigos a partir, especialmente, do século XI. São obras com oas de São Bernardo de Claraval e Jean de Salisbury que, ao lado de Lúlio, são reconhecidos por Jean Flori, historiador francês, como os “teóricos da cavalaria”.
De fato, estas obras são responsáveis por criar e inserir – ou ao menos tentar – nos ideais cavaleirescos, elementos da doutrina cristã. Seus auto ressão os principais responsáveis por determinar a mais pura definição de uma ética cavaleiresca. Numa mudança ideológica do que outrora pregara as instituições eclesiásticas para controle destes milites (ou guerreiros, fosse meles cavaleiros ou não), como a paz e trégua de Deus – que visavam, no fundo, não ao controle dos direitos senhoriais, mas limitar a ação guerreira dos senhores feudais e seus cavaleiros em territórios de outrem, – os autores das supracitadas obras pensavam em ordenar as ações dos cavaleiros através da criação de um estilo de vida novo, onde os cavaleiros poderiam se reconhecer através de um objetivo comum, e que conteria uma ideologia que se inserir ia dentro de uma ética religiosa mais abrangente. Em outras palavras, as instituições de paz, muito em voga entre o fim do século X e meados do XI, pretendiam muito mais obter um domínio sobre as ações guerreiras, numa tentativa de evitar as lutas intestinas entre os senhores feudais, ao passo que os “teóricos da cavalaria” desejavam inculcar nos cavaleiros uma ideologia própria, num momento em que a alcunha “cavaleiro” se propagava e era, cada vez mais, utilizada pela alta aristocracia, tal era o reconhecimento de que gozava o título. Uma vez feitas essas considerações, pretendemos, inicialmente, estudar como os ideais cavaleirescos foram influenciados por uma ética cristã e como os “teóricos da cavalaria” tentaram inserir os cavaleiros num contexto de uma sociedade tripartida – oratores, bellatores e e laboratores, onde cada uma dessas três ordens teria um ofício específico - dando-lhes, assim, uma função própria e um reconhecimento social. Num segundo momento, e ponto chave deste estudo, entraremos mais profundamente na obra de Raimundo Lúlio, analisando através de exemplos, como ele entendia a maneira de ser e a ideologia e ética da cavalaria.
Os “teóricos da cavalaria”, as três ordens e a cavalaria. Quando os primeiros “teóricos da cavalaria” aparecem com suas obras, a mudança na concepção da guerra pela Igreja já está em pleno desenvolvimento. Cabe aqui, então, um pequeno parêntese para lembrar o que foi, na realidade, esta mudança. Desde cedo o cristianismo sempre pregou a paz. A Igreja, como uma das instituições poderosas da idade média, ainda tentou, por meio das ditas instituições de paz (a paz e trégua de Deus), se defender das batalhas intestinas que eram travadas no ocidente europeu por volta do ano mil. “A própria Igreja é a principal vítima dessas guerras feudais. É a razão pela qual ela tenta se precaver por meio das instituições de paz.”
Elas têm iníco em fins do século X na Catalunha e Aquitânia e ganham todo o Ocidente durante o século XI, antes de, pouco a pouco, no século XII, serem substituídas pelas autoridades reais e principescas, em plena renovação por volta deste período. Um pouco antes, a Igreja ainda enxergava a cavalaria com maus olhos. Apesar de todos os seus esforços, a paz e trégua de Deus pouco adiantaram para se obter um maior controle da turba desordenada que eram os cavaleiros. Então, em meados do século XI, uma reforma eclesiástica começou a tomar forma, culminando no Concílio de Clermont em 1095, onde o Papa Urbano II pregou a Primeira Cruzada. Desta reforma surgiu o conceito de guerra justa, em outras palavras, ela destaca dentro da ordem dos bellatores, a ordem de cavalaria. Os “teóricos da cavalaria” são, em sua maioria, senão homens da Igreja, pessoas devotas e profundamente ligadas ao catolicismo. Em suas obras há uma adaptação ou transferência de conceito. De fato, os termos que encontramos para a definição do poder nas mãos dos reis e príncipes, salvo algumas exceções, serão os mesmos que, posteriormente, estarão presentes na ética cavaleiresca. Vejamos por exemplo, o que diz Hugo de Flavigny, no início do século XII. Sempre submetendo a autoridade temporal à Igreja, ele exalta o poder real sublinhando sua missão: “governar o povo de Deus, guiá-los com justiça e equidade, ser o defensor das igrejas, o protetor dos ófãos e das viúvas, entregar potência ao fraco e ao necessitado sem apoio”. Este é o tom que encontraremos em livros que tentam dar uma definição ao ideal cavaleiresco, já bastante presente em meados do século XII, como prova a seguinte citação, retirada do Policraticus de Jean de Salisbury: “a função da cavalaria regular consiste em proteger a Igreja, combater a perfídia, reverenciar o sacerdócio, garantir de injustiças os fracos, fazer reinar a paz no país e derramar seu sangue por seus irmãos e, se necessário, dar sua vida por eles.”
Este último autor repensa a sociedade medieval, vendo-a como um corpo humano, onde a cabeça é o rei e as mãos seus cavaleiros, responsáveis pelas ações do príncipe. “Este deslocamento ideológico não é fortuito. Ele traz à evidência uma evolução das concepções políticas e uma adaptação às realidades contemporâneas: o crescimento da cavalaria por um lado, e a renovação do poder real por outro.”
A cavalaria, assim, encontra seu espaço na sociedade, se justifica, se define, assume uma função, se atribui uma missão, se dota de uma ideologia.
É, também, uma aproximação real da cavalaria com a nobreza. É dizer que a cavalaria, cada vez mais, ganhava mais espaço e reconhecimento na sociedade, graças a ação destes teóricos, mas também devido aos chamados Romances de Cavalaria, cujas obras de Chrétien de Troyes constituem o melhor exemplo. Com a valorização da ordem de cavalaria, a nobreza, pouco a pouco, vem tomando para si própria o título de cavaleiro, tal era a honra que lhe era conferida. Isso culminará, no século XIII, numa absorção por completo da cavalaria pela aristocracia.
Vimos, portanto, como a Igreja, por meio da literatura, conseguiu inserir no seio da cavalaria, elementos da ética cristã. Como a Santa Sé, também Raimundo Lúlio tinha esta preocupação em mente, o que o levou a se envolver e a se preocupar com o papel desempenhado pela cavalaria na sociedade medieval. Filósofo, poeta e escritor maiorquino, autor de inúmeras obras, nasceu por volta de 1232, quando da conquista da ilha de Maiorca pelo rei de Aragão Jaime I, o Conquistador. Antes de se dedicar às letras, foi cavaleiro, senescal e mordomo do filho deste, Jaime de Maiorca. Em meados da década de 1260, Lúlio abandona o ofício das armas para se dedicar à pregação e conversão de mouros e judeus ainda existentes em grande número na Península Ibérica, naquele período ainda em constante guerra, a qual chamamos Reconquista.
Tornou-se, então, um missionário laico. Embora se identificasse muito com a espiritualidade franciscana, não existem provas de que Raimundo Lúlio tenha integrado qualquer ordem religiosa. Assim como os outros denonimados “teóricos da cavalaria”, Raimundo Lúlio desenvolveu um trabalho a respeito da ideologia cavaleiresca. Considerada por estudiosos como o primeiro verdadeiro tratado escrita por volta de1283, reflete muito este envolvimento e as aflições que permeavam sua alma. A obra “tem conteúdo missional e pretende ocupar espaço na formação dos novos pretendentes à Ordem de Cavalaria, iluminando o caminho dos noviços com valores espirituais, morais e éticos”. Lúlio parece um pouco desapontado com os rumos que toma a cavalaria em fins do século XIII. Explicando as razões da escrita de sua obra, inicia-a com um prólogo onde um velho eremita e ex-cavaleiro dá a um jovem escudeiro um manual de conduta e prática da boa cavalaria. É perceptível o desapontamento do velho eremita ao saber que o escudeiro vai ao castelo do rei para ser sagrado cavaleiro sem sequer conhecer as virtudes e os ofícios da cavalaria:
- Como filho? – disse o cavaleiro – e tu não sabes qual é a regra e a ordem de cavalaria? E como tu podes aspirar à cavalaria se não tens sapiência da Ordem de Cavalaria? Pois nenhum cavaleiro pode manter a Ordem que não sabe, nem pode amar sua Ordem, nem o que pertence à sua Ordem, se não sabe a Ordem de Cavalaria, nem sabe conhecer as faltas contra sua Ordem. Nem nenhum cavaleiro deve armar outro cavaleiro se não conhece a Ordem de Cavalaria, porque desonrado cavaleiro é o que faz outro cavaleiro e não sabe lhes mostrar os costumes que pertencem ao cavaleiro. Lamento que o próprio Lúlio parece compartilhar. Ora, parecia-lhe, segundo o prólogo, que o cavaleiro havia se esquecido do ofício, das virtudes e, pior, no que consistia a Ordem de Cavalaria. A cavalaria parece ter se perdido, pois seus integrantes cometiam perjúrio, luxúria, eram ladrões e traidores de sua causa. Considero aqui oportuno o momento de salientar que este prólogo se difere em muito do resto do livro. Sua forma é literária, ao passo que os outros coração. Estes homens se encontrariam entre os nobres. De fato, no período em que Lúlio escreve sua obra, a cavalaria está, se não em sua totalidade, já em grande medida, sob o controle da nobreza. O autor chega a propor uma hierarquia dentro da própria Ordem de Cavalaria: Tanto é nobre coisa o ofício de cavaleiro que cada cavaleiro deveria ser senhor e regedor de terra; mas, para os cavaleiros, que são muitos, não bastam as terras. E, para significar que um só Deus é senhor de todas as coisas, o Imperador deve ser cavaleiro e senhor de todos os cavaleiros; mas, porque o imperador não poderia por si mesmo manter e reger todos os cavaleiros, convém que tenha abaixo de si reis e cavaleiros, para que o ajudem a manter a Ordem de Cavalaria. E os reis devem haver abaixo de si condes, condores, varvesores, e assim outros graus de Cavalaria; e debaixo destes graus devem estar os cavaleiros de um escudo, os quais devem ser governa dos e possuídos pelos graus de cavalaria acima ditos.
Bem entendido, para se manter a ordem, seria necessário seguir à risca esta hierarquia, levando em consideração algumas das virtudes pertencentes à Ordem de Cavalaria, tais como obediência e lealdade. É o desejo de Lúlio ressaltar tais virtudes, em contra posição aos vícios, que deveriam ser afastados da vida dos cavaleiros, numa espécie de jogo de opostos. Nesse sentido, dedica um capítulo inteiro para ressaltar a importância de cada uma das virtudes necessárias à conduta correta de um cavaleiro, através das quais faria exercer a justiça no mundo. Estas são: fé, esperança, caridade, justiça, fortaleza, prudência e temperança. Estes elementos, se seguidos, fariam do cavaleiro o homem ideal, demonstrando a visão de Lúlio do papel do cavaleiro na sociedade medieval. Ele era o responsável pela manutenção da ordem e da justiça, para que não se cometesse roubo, violência, destruição e estupros, todos estes elementos de crítica por parte de Raimundo Lúlio. Sua grande decepção reside exatamente neste fato: o cavaleiro do seu tempo parece ter renunciado ou esquecido as suas virtudes e os seus ofícios, cometendo os maiores pecados justamente contra aqueles aos quais havia jurado defender quando de sua sagração. Lúlio quer o retorno dos tempos áureos da cavalaria, quando reinavam as sete virtudes, sobrepujando vícios da humanidade, é dizer, o restabelecimento de uma ordem mítica e gloriosa, ligada diretamente à nobreza e à cavalaria.Vale fazer uma pequena observação sobre este último aspecto aqui apresentado. Apesar da ética cristã estar intrinsecamente ligada não apenas ao ideal cavaleiresco luliano, mas a ele com um todo, a Ordem de Cavalaria também bebia de outras fontes. Como ressalta Jean Flori, “a ideologia cavaleiresca não deve mais aos valores cavaleirescos que àqueles da aristocracia laica, à tradição católica que aos mitos celtas e germânicos, ao sescritos dos pais da Igreja que à literatura e às tradições profanas, às virtudes cristãs que à glorificação da violência, do amor cortês e do orgulho de casta.”
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